O encontro da fantasia e da realidade 🌙

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"Foi totalmente divergente do que eu imaginava. Ele tem momentos tocantes, momentos desconcertantes e momentos de medo e caos. Mas eu tô muito feliz por conhecer esse universo."@TermineiCast

"A escrita é super fluida e viciante, a gente começa a ler e não quer parar enquanto não acabar!"@fireheart.l


Leia os dois primeiros contos do livro


Folclore, fantasia, paranormalidades. O encantamento por tudo o que foge ao cotidiano e não se explica. A natureza. A insanidade. Traumas e opressões. O universo onírico. Cidades mineiras ficcionais. Todos esses ingredientes, em maior ou menor medida, entraram no preparo dos Contos de Descômodo. O próprio “descômodo”, que a autora considera quase um gênero, surgiu dessa mistura. Escrever, grande parte das vezes, é partir de um descômodo para causar outro.



O CAMISOLADO

Muito alto, muito magro, muito pálido. Era um sujeito envelhecido, menos pelo tempo do que pelo próprio rancor que tinha do mundo. Julgava-se injustiçado por não ter nascido rico ou belo, e nunca conseguira, ainda que por vezes tivesse tentado com afinco, fingir simpatia. Natural que não tivesse amigos e amores; com os poucos parentes vivos, não fazia questão de manter contato. 

Sobrevivia de uma pequena aposentadoria precoce, adquirida depois de um acidente de trabalho que o deixou sem o polegar e o indicador da mão direita. O dinheiro bastava para o aluguel e o básico da alimentação mensal, além de um vinho barato que bebia moderadamente. 

Posto que não gostasse de pessoas e que, por outro lado, se sentia aflito quando passava longos períodos sem sair de casa, gostava de caminhar de madrugada. A madrugada era boa... Beijava-lhe as faces com sua brisa gélida assim que ele saía para a rua, protegia-o com seu manto escuro, ouvia-lhe os segredos sem que fosse preciso falar. A madrugada era cúmplice. 

Numa dessas ocasiões, entretanto, um inconveniente: uma senhora que por acaso estava na janela o avistou ao longe. Sendo ruim da vista, supersticiosa e esbaforida, e talvez também porque ele estivesse todo de branco, julgou logo que fosse um fantasma. Ela gritou o mais alto que pôde (“Um fantasma! Um fantasma!”), e não demorou para que as luzes de várias outras casas fossem se acendendo e que novos gritos confusos se juntassem ao coro. O pobre homem, percebendo, assustado, que era o motivo do alvoroço, virou a esquina e fugiu. Correu com suas pernas compridas, dobrou mais esquinas escuras, percorreu quarteirões e mais quarteirões... 

Acabou parando, enfim, em um terreno vazio. Ali, com uma mão no joelho e a outra no coração, olhos esbugalhados, ele tomou fôlego. Depois... começou a rir. Primeiro de nervoso, depois de divertimento. Ria insanamente, ria como nunca rira a vida inteira. Descobriu que havia adorado o que acabara de acontecer. Ele tinha perturbado a paz dos pacatos e hipócritas cidadãos de Teixeira Prado e, ao mesmo tempo, sentido uma adrenalina maravilhosa... 

Precisava repetir o feito. 

Na madrugada seguinte, achou oportuno assumir para si uma indumentária que o fizesse ainda mais temido. Optou por usar um camisolão velho que estava amarelando no armário desde tempos imemoráveis. Em seguida, encontrou na gaveta um batom vermelho que achara na rua certa vez, e que guardara consigo por algum motivo secreto e pessoal. Passou-o ultrapassando os limites dos lábios, quase com raiva, e rebocando-o mesmo nas bochechas. Para finalizar a personagem, adotou um olhar permanentemente arregalado. 

E foi. E foi descalço. E foi cantarolando baixinho uma canção inventada numa língua inventada. Foi e, à medida que ia passando diante das casas, arranhava as janelas de metal. 

O primeiro indivíduo que o avistou deu o aviso: “Acordem! Acordem! O maldito voltou!” Um senhor que teve o azar de abrir a janela e dar de cara com o suposto fantasma teve um mal súbito, caindo convulso no chão. Mais duas mulheres e uma criança o relancearam, paralisadas de pânico. “Basta por hoje”, ele pensou. Escondeu-se atrás de um poste e, dali, deu um jeito de se esgueirar pela esquina e sumir de vez. 

Pela manhã, por meio da conversa alta de dois homens próximos à sua porta, tomara conhecimento de que sete pessoas foram parar no hospital com vômitos, tontura e falta de apetite. Segundo o que diziam, todas relataram a mesma coisa: começaram a passar mal depois de presenciar fenômenos como paredes que apareciam arranhadas, espelhos que se quebravam sozinhos e uma cantoria sinistra e desconhecida que adentrava os cômodos. E esses fenômenos, é claro, eram associados ao Fantasma do Camisolado. Era assim que chamavam a aparição da noite anterior: Camisolado, o excomungado que carregara consigo a alma do Seu Costa. 

Ele resolveu não sair naquela madrugada. Soubera, no decorrer do dia, que mais doze pessoas tinham sido internadas com os sintomas causados pela “energia negativa que rondava a cidade”, pela “maldição do Camisolado”, ou pela, como mais sensatamente tinha chamado o doutor Rodrigo Pasto, “histeria coletiva que tomou os bons cidadãos de Teixeira Prado”. Ele sabia que, se saísse fantasiado de fantasma, seria caçado. Não queria ser caçado. Não queria ser morto. Não! Só queria brincar um pouco... 

Malditos os “bons cidadãos de Teixeira Prado”! Quem poderia ter esperado aquela reação? 

Saiu à tarde no dia seguinte, vestido usualmente, e descobriu na rua que já eram vinte e sete no hospital “doentes da histeria”. Ouviu ainda vários, vários relatos paranormais que as pessoas — desde as que carregavam cestas de hortaliças na cabeça até as que tinham relógios de ouro nos punhos — comentavam entre si. Viu sal grosso nos arredores de várias casas, viu muitas pessoas na igreja, mesmo que não fosse horário de missa, viu mães consolando filhos amedrontados. E sentiu medo. Medo de si mesmo. Não sabia bem o porquê, mas temia-se com todas as suas forças. 

Correu para a casa, fechou as janelas, trancou as portas. Deitou-se, enrolou-se nos cobertores e passou a repetir, sem parar: “Não, não! Eu não quero ser caçado. Eu não quero ser morto. Não. Não! Malditos! Malditos! Eu não quero ser caçado! Não...” 

Logo ouviu alguém a seu lado repetindo as mesmas palavras. Era a voz do Camisolado. Gritou, correu, trancou-se no banheiro. Quando virou as costas olhou diretamente o espelho, e deu de cara com o Camisolado. Reabriu a porta, reabriu várias portas, correu para a rua gritando. 

Não demorou a ser agarrado. Berrava: “Me soltem! Vocês ‘tão enganados! Eu não sou o Camisolado! Eu, eu acabei de ver o Camisolado lá em casa! Não sou eu! Me soltem!”

Ninguém entendia nada. 

Levaram-no para o hospital. Era a trigésima segunda vítima da histeria que tomou a cidade.




AUTÔMATA

Virou para um lado, depois para o outro. Puxou os cobertores para junto de si para, em seguida, sentir calor e empurrá-los de novo. Semicerrando os olhos, conferiu as horas no visor do celular. 1:45h da madrugada. Respirou fundo. Tentou não pensar em nada, mas não conseguiu. Deu-se por si questionando como, mesmo estando tão profundamente cansada, não conseguia dormir. 

Virou para um lado. Virou para o outro. Conferiu novamente as horas no visor do celular: 3:05h. Dali a menos de duas horas teria que estar de pé outra vez, para então tomar meio copo de café, pegar um ônibus, atravessar parte da cidade, descer, pegar outro ônibus, percorrer mais alguns bairros e chegar às 7h à casa da patroa. Chegar às 7h, bem-disposta, à casa da patroa. 

Queria chorar. Ao invés disso, depositou o celular outra vez no móvel ao lado da cama e acomodou-se no colchão. Com o movimento, contudo, sentiu um puxão vindo de dentro do ouvido direito. Ergueu um pouco a cabeça: novo puxão. Espantada, levou a mão à orelha. Mais espantada ainda, constatou que um fio grosso saía dali. Lembrou-se dos negócios que o filho usava no ouvido para escutar música. Como um daqueles fora parar na cabeça dela? 

Tentou tirá-lo; estava preso. Puxou mais forte; doeu. 

Levantou-se em pânico e acendeu a luz. No espelho da porta do guarda-roupa, constatou não apenas o corpo robusto que sempre teve ou as olheiras previsíveis: um cabo cinza saía de dentro de sua orelha e se estendia para além da entrada do quarto. 

Saiu, acendeu a luz da sala contígua. O cabo percorria todo o chão e dali se esgueirava por debaixo da porta da rua. Horrorizada, levou a mão outra vez ao ouvido. Fez novas tentativas de arrancar o fio intruso, aumentando, gradualmente, a força dos puxões. Na puxada mais forte, quase gritou de dor. O fio permanecia intacto. Voltou até o quarto, frustrada, colocou uma calça de moletom e um casaquinho fino por cima da camisa de pijama e, trocando as pantufas por chinelos de borracha, apagou as luzes, destrancou a porta e saiu. 

Estragado um dos poucos postes que iluminavam a rua, era difícil enxergar até onde o cabo ia. Teve um momento de hesitação; sair sozinha de madrugada, e ainda por cima sendo mulher... Mas o que podia fazer? O mais assustador de tudo era aquele fio. Se um desavisado o puxasse, ou se um carro passasse por cima dele e, enroscado nele de alguma forma, saísse o arrastando... não gostava nem de imaginar. 

Foi andando em passinhos curtos e ligeiros enquanto ia enrolando o cabo no braço. Esperava, do fundo da alma, que aquilo tivesse um fim rápido... Logo seriam 4h da manhã e pelo menos meia hora de sono ela tinha que ter. 

Caminhou alguns quarteirões na rua deserta, enrolando o fio, ouvindo apenas o som de gatos acasalando em algum quintal. Mais uns trezentos metros adiante, pensou ter ouvido a batida de uma música longínqua e algumas risadas. Vinham de outras vizinhanças. Naquela pela qual caminhava, por bem ou por mal, nem sinal de gente. 

Já ia se fatigando quando atingiu o final da rua. O braço ia bastante adornado com o fio já recolhido, mas este ainda não tinha acabado; prosseguia, virando a esquina. Ela virou também. 

Desceu mais uns duzentos metros. Em outra esquina, virou à direita, retornando pela rua de baixo. Aqui e ali, no percurso, cachorros invisíveis latiam-lhe. 

Depois de um bom pedaço, virou uma esquina à direita, outra vez, e deu por si subindo a rua que levava até sua própria casa. Trazia enrolados mais de mil metros de cabo que não pareciam, contudo, fazer tanto peso ou volume. 

Quase à porta, vislumbrou seu término (antes, por algum motivo, ignorado); acabava em uma tomada. Recolheu-a, exausta. Tão exausta que não estranhava mais nada. Apenas destrancou a porta, entrou, deixou o rolo de fio num canto e, sem saber como ou por quê, plugou a tomada. Tudo tão automático como num sonho. Ou como na vida. 

 Deitou-se e dormiu.